A digitalização está limitando nossa cultura?

Last Updated: janeiro 30, 2025By

Muita gente reclamou, mas o vídeo lançado pela Apple na semana passada, que mostra objetos relacionados à criatividade e à arte, como tintas, instrumentos musicais, livros e câmeras sendo esmagados e triturados, diz muito sobre nossos tempos. A ideia (desastrada) foi mostrar a multiplicidade de usos e o poder do novo IPad, mas poderia muito bem ser uma crítica ao processo de superficialização e simplificação pelo qual tem passado nossa produção cultural.

A digitalização do mundo, que começou há uns 80 anos, com a invenção do ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer), e nos levou ao atual hype da inteligência artificial generativa, pode ter tornado o acesso à cultura e a criação artística mais democráticos, porém, também vem deixando tudo cada vez mais pasteurizado, reduzindo a complexidade e as nuances que deixam os produtos criativos mais ricos e estimulam os sentidos, despertando sensações que nos conectam com nossa humanidade.

Alexa, próxima!

Um exemplo claro é a música. Antigamente, uma composição era pensada para orquestras formadas por até 100 músicos com instrumentos diferentes, hoje o que basta para fazer uma música ser hit é seguir uma fórmula de simplificação adequada aos algoritmos das redes sociais. Uma pesquisa da Universidade de Innsbruck, na Áustria, publicado na revista Scientific Reports, analisou mais de 12 mil canções em língua inglesa de rap, country, pop, R&B e rock, de 1980 a 2020, e mostrou que antigamente as letras eram mais poéticas, utilizando ferramentas de linguagem como rimas, metáforas e figuras imagéticas. Em todos os gêneros, as letras atuais tendem a se tornar mais simples e repetitivas, além de muito mais raivosas e autocentradas, com palavras como “eu” ou “meu” se tornando mais frequentes. 

Além disso, o ritual de ouvir música, que envolvia a apreciação de um álbum com uma sequência bem pensada de canções, contando uma história, praticamente deixou de existir. Hoje, os primeiros 10 a 15 segundos de uma faixa são decisivos para pularmos para a próxima na plataforma de streaming ou para o próximo vídeo nas redes sociais. Por isso, a fórmula que faz sucesso no TikTok tem influenciado o modo como os artistas compõem. O SongCrunch fez uma análise computacional e descobriu que a maioria dos sucessos do TikTok tem um número limitado de acordes, sendo a maioria diatônica. Assim, muitos sucessos são baseados em estruturas de acordes menores e chegam ao refrão mais rápido do que a maioria das músicas. “Yummy” de Justin Bieber, por exemplo, tem uma melodia e letra simples e que se repetem porque foi construída para a plataforma. 

Um estudo anterior, realizado em 2012 pelo Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha, com 464.411 músicas gravadas entre 1955 e 2010, já havia revelado que os hits mais atuais repetem basicamente a mesma estrutura dos sucessos mais antigos, mas apresentam melodias mais simples e volume mais alto, além de terem timbres mais reduzidos, o que significa que o leque de instrumentos utilizados é muito menor que no passado. 

Sem palavras

Não é só nas músicas que o número de palavras usadas está diminuindo. A agilidade e a informalidade da comunicação nas redes sociais e canais digitais tem reduzido o número de palavras usadas, aumentado o uso de abreviações e de emoticons substituindo expressões e jogado para escanteio a preocupação com regras gramaticais e ortográficas. Isso se reflete também em textos mais longos de legendas e, até mesmo, em artigos de portais de grandes veículos de comunicação, onde se tornam cada vez mais comuns os erros de concordância, de ortografia e de pontuação. 

Segundo os professores de Psicologia da USP Avelino Luiz Rodrigues e Allan Felippe Rodrigues Caetano, “é notório que existe na contemporaneidade um empobrecimento da linguagem tanto oral quanto escrita. A redução do vocabulário, assim como a estereotipação de frases, atesta o empobrecimento da linguagem. Menos palavras e menos verbos conjugados significam menor capacidade de expressar emoções e menor capacidade de elaboração do pensamento”.   

Para a neurocientista americana Maryanne Wolf, autora do livro “O Cérebro no Mundo Digital – Os desafios da leitura na nossa era” o fato de lermos cada vez mais em telas, em vez de papel, e a prática cada vez mais comum de apenas “passar os olhos” superficialmente em múltiplos textos e postagens online podem estar dilapidando nossa capacidade de entender argumentos complexos, de fazer uma análise crítica do que lemos e até mesmo de criar empatia por pontos de vista diferentes do nosso.

O futuro é preto e branco?

O universo das artes, da arquitetura e do design também estão ficando mais empobrecidos. Estudo do Science Museum Group mostra uma crescente prevalência de tons de cinza no design e na arquitetura ao longo do tempo. A análise de mais de sete mil fotografias de objetos históricos revelou que, desde o século XIX, há uma tendência crescente para tons de cinza, especialmente após a introdução de novos materiais como o plástico e o aço inoxidável, que substituíram materiais mais coloridos como a madeira. Essa diminuição de cores pode ter impactos psicológicos, como a perda de diversidade cultural e de criatividade. O periódico científico Psychological Science, revelou que, em uma experiência, pessoas que assistiram a um vídeo triste foram menos precisas na identificação das cores do que pessoas que viram um filme feliz.

Além das cores, adornos e formas mais rebuscadas perderam espaço com a popularização do estilo Minimalista, que procura eliminar dos objetos elementos considerados desnecessários, deixando apenas componentes funcionais e priorizando formas geométricas simples, cores neutras e falta de decoração ou conteúdo narrativo. 

Apesar de refletir um movimento cultural mais amplo em direção à simplicidade como contrapeso à complexidade e à superestimulação que vivemos, essa simplificação acaba criando, de certa forma, uma padronização global de objetos e produtos, eliminando características autorais e regionais, que antes refletiam modos de vida e visões de mundo específicas. 

Assim, funcionalidade e utilidade em uma estética estéril é valorizada acima de adornos que remetem à complexidade das formas da natureza e da vida.

Comida industrializada

Nossa capacidade de apreciar sabores também é impactada pela redução das nuances de sabores, causada pela padronização dos alimentos industrializados. A necessidade de produzir grandes quantidades de alimentos de maneira eficiente leva ao comprometimento da complexidade dos sabores. Técnicas de processamento, como a pasteurização e a esterilização, podem também impactar negativamente a profundidade e a riqueza dos sabores naturais​. Além disso, o uso de tecnologia para criar perfis de sabor consistentes pode levar a uma homogeneização dos sabores. Aromatizantes e intensificadores de sabor são frequentemente usados para garantir que os produtos tenham o mesmo gosto, independentemente do lote ou da época do ano​​.

A padronização dos sabores pode levar a uma experiência sensorial menos rica e menos diversificada, reduzindo a apreciação das sutis nuances e complexidades que existem em alimentos frescos e preparados de forma tradicional​. A uniformidade dos sabores pode também impactar negativamente a preservação das tradições culinárias regionais e locais, que transmitem riqueza cultural e histórica. Assim, o ato de se alimentar, que antes era um ritual com diversos estímulos sensoriais, passa também a ter apenas aspecto funcional.

A IA Generativa pode nos ajudar?

Se essa vemos a tendência à simplificação quando a criação é humana, imagine quando imagens, textos e vídeos forem criados com base apenas em outros conteúdos gerados por IA?

Segundo artigo de Ronaldo Lemos, publicado na Folha de S. Paulo, um estudo do Instituto de Estudos do Futuro de Copenhague prevê que 99% do conteúdo que será postado na internet em 5 anos será gerado por inteligência artificial. 

Isso pode agravar ainda mais a falta de profundidade, de nuances, de diversidade e de complexidade do que veremos na web. Testes realizados na Rice University, no Texas, mostraram que à medida que a Internet se enche de imagens, textos e vídeos criadas por inteligência artificial, há o risco de se criar um ciclo autoconsumidor, com IAs generativas treinadas com suas próprias imagens sintéticas, produzindo falhas e desfoques. Isso poderia levar a enormes quedas na qualidade ou na diversidade dessas imagens.

A importância dos cinco sentidos

Ao mesmo tempo em que aproxima pessoas distantes com interesses em comum e ajuda a criar comunidades globais, a tecnologia afasta as pessoas da convivência física e diminui oportunidades de trocas sensoriais. Relacionar-se com o mundo fisicamente, em três dimensões, em vez de apenas através de uma tela bidimensional, impacta significativamente nossa cognição de várias maneiras. 

Nossos sentidos são a base para o desenvolvimento cognitivo, o vocabulário e as relações sociais. Eles também nos ajudam a compreender o mundo que nos rodeia, reter informações e detectar perigos.

De acordo com a Teoria Cognitiva de Aprendizagem Multimídia do psicólogo Dr. Richard E. Mayer, o cérebro absorve e processa informações por meio de vários canais, estimulando tanto a memória sensorial quanto a visual. Por isso, nosso cérebro é inundado com imagens e emoções quando ouvimos uma música que marcou uma viagem ou quando sentimos um cheiro que lembra a casa dos avós.  

A redução de estímulos físicos complexos e variados pode levar a uma experiência de vida menos rica e menos gratificante, reduzindo a capacidade de apreciar as sutilezas e as belezas do mundo ao nosso redor, diminuindo a motivação e a capacidade de encontrar prazer nas atividades diárias e pode contribuir para sensação de tédio e insatisfação, aumentando os níveis de estresse e ansiedade, sentimentos de vazio e desespero. 

Existe antídoto?

Sem pressa, sentar-se em um café em companhia de um livro. Pedir uma bebida e, enquanto espera, sentir o cheiro do líquido fresquinho e quente saindo da máquina. Observar as pessoas ao redor, reparar em seus gestos, suas expressões. O cheiro de bolo saindo do forno se espalha pelo ambiente e a moça animada ao lado conta pro amigo sobre uma epifania que teve depois de sair do cinema ontem a noite e o faz sorrir. “I’ve got you under my skin”, canta Frank Sinatra fazendo fundo ao burburinho de vozes que se mistura aos sons de talheres batendo na cozinha. O livro sai da bolsa e o toque aveludado das páginas faz carinho nos dedos ao mesmo tempo em que o cheiro do papel se transforma em frio na barriga.

Rituais como esse nos colocam na contramão da realidade mostrada no vídeo do novo IPad. Neste caminho, está o resgate e a valorização do que nos torna humanos: as construção de conexões profundas com outras pessoas, a capacidade de compreender suas emoções, a dedicação a rituais que nos façam experienciar e valorizar o momento presente, mas também a habilidade em preservar e valorizar tradições do passado e de imaginar e criar o futuro por meio da busca por inovação e melhoria.

Está a lapidação da nossa sensibilidade, em oposição à busca pela produtividade constante e pela aceleração de tudo, com base em uma urgência inventada. Está a contemplação, a observação calma e atenta do mundo, a percepção dos detalhes. Está vivenciar realmente em vez de apenas receber passivamente dados por meio de telas. Criar espaços para tocar, sentir, cheirar, ouvir, saborear e refletir é essencial para nos resgatar de superficialidade e nos reconectar com toda a profundidade de sermos humanos.

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